Como Clarice Lispector eu empurrava o carrinho do Francisco numa manhã ensolarada de domingo sentindo-me a mãe de Deus. Não que o espírito natalino me contagiasse naqueles princípios de dezembro, e nem que eu deixasse aflorar o meu sentido crédulo, pensando amar a figura nebulosa que tenho de um deus entidade, bem em letra minúscula, de quem eu pouco sei e do que sei, desconfio. É que o Francisco é o meu universo particular, meu Deus maiúsculo e interior, minha idéia de conexão com o transcendente, minha imanência. Já disse e repito, sei que todos nascemos da mesma maneira, todos, sem exceção, mas essa história de maternidade até hoje me parece um grande milagre! E milagrosamente acordei disposta naquela manhã, acordei com o Francisco e com os passarinhos, disposta a ofertar ao meu rebento sagrado, os primeiros raios passos do sol, que acarinham a pele macia dos bebês, sem máculas e nódoas que só se evita com o melar dos cremes, que os bebês, diga-se de passagem, odeiam. Assim que íamos, os três, Francisco, eu e o sol, à pracinha da Sabesp, alegres como a manhã, cantarolando com as pombas que não cantam, as músicas que o Francisco quase sabe cantar: Boi, Boi. Boi... em certas questões, sou reacionária! Não gosto das releituras politicamente corretas que impedem as crianças de tentar matar um gato hipotético para a admiração de uma Dona Chica que nenhuma criança conhece, ou a versão do Boi da Cara Preta que escutamos recentemente: “amiguinho do Francisco que adora uma careta”... Sou contra! Em todas as culturas as canções de ninar são nefastas, abandonam pequenos no topo das árvores, pegam os pequenos no berço enquanto os pais estão na roça, e que eu saiba, nunca houve uma epidemia de insônia infantil em toda a história da humanidade! As crianças sempre dormiram muito bem, obrigada. Eu que não durmo desde que o Francisco nasceu, simplesmente porque ele não deixa, ouso afirmar que a culpa é das músicas, que ninguém mais canta direito! Mas naquele manhã eu despertei descansada, porque numa média quase bimestral, o Francisco me brinda uma noite inteira de sono, e ela aconteceu justamente na véspera. Eu gosto da pracinha da Sabesp porque é a pracinha do bairro, classe média como eu, sem babás, como eu, sem os carrinhos de bebê em forma de carro que o Francisco também não tem, e quando vê dos outros não pensa em outra coisa, sem as criança com suas melhores roupas de festa com suas respectivas mães, de salto, mal humoradas porque ainda não providenciaram babás folguistas para as inexoráveis manhãs de domingo, em que, em qualquer classe social, as crianças acordam cedo. Lá na Sabesp a mulherada vai praticamente de pijama, com cara de sono, e uma disposição mediana para as idiossincrasias particulares de seus filhos. A lei é : nada é de ninguém! Caiu no tanque de areia é de domínio público. Os pequenos que se acostumem, ora! Eu, e nem elas que também estão com sono, vamos ficar reivindicando a posse de balde, pá, rastelo, peneira... Mas na Buenos Ayres, por exemplo, que eu gosto pela estrutura física, reinam as babás. E elas defendem a propriedade privada de seus patrões, mesmo que seja um baldinho do Barney, e estão sempre munidas de uma caneta para escrever os nomes nos respectivos brinquedos, inclusive nos brinquedos dos outros! Fico louca quando escrevem nos brinquedos do Francisco. Não porque estraga o brinquedo, mas porque estraga o Francisco. Também sou contra essa noção de posse, que já argumentaram que é fundamental para a consolidação da identidade da criança. Acho que a mania do “É meu” não passa nunca, e por isso o mundo está do jeito que está! Mas como na pracinha não tem essa, e raramente você vai ouvir alguma mãe dizendo “fulano devolve que a bola é do beltrano”, eu estava zen, olhando de longe, tomando um solzinho nas frestas das árvores, admirando meu pequeno Buda, feliz porque sim... E então sentou-se ao meu lado uma mãe de óculos escuros grandes, gente fina, com um sotaque híbrido que delatava seu querido estado de origem. Sua filha tinha apenas três meses. Falamos sobre as coisas que as mães falam , eu aproveitei, orgulhosamente para relatar a minha experiência de mais de 17 meses de amamentação, que super recomendo apesar do mundo ser contra, porque além de todos os benefícios óbvios do vínculo mãe-filho e da praticidade, emagrece que é um azougue! E lá seguíamos, papeando e descobrindo coincidências: profissão, pós-graduação, se a filha dela fosse homem teria o nome do meu filho. Sendo mulher, tem o meu nome. Eu adoro coincidências! E empolgada com a conversa, e vendo que seus pais também foram fazer uma visita na praça, exatamente como meu pai e minha madrasta costumam fazer, detectei que, de todas as mães que tem a ver comigo daquela pracinha, aquela era a mais legal de todas. Até que fiz a pergunta errada: “Seu marido também mora aqui?”, ao que minha nova amiga respondeu: “Sou viúva”. A história toda eu não vou mais contar, não porque eu não saiba, porque intrometida perguntei tudo, sim, mas porque não precisa. Viúva com um bebê de três meses! E linda, fashion, simpática e sorridente... Voltei para casa, relembrando as coincidências, desejando que essa última não acontece pra mais ninguém no mundo, tentando perdoar Deus, como Clarice. Mas essa falta me pareceu grave demais. Que minha nova amiga siga assim, linda, fashion e sorridente, e que ainda que saiba que essa vida não passa de um imenso oxímoro sem licença poética, há que se seguir vivendo, porque os nossos pequenos precisam dos primeiros raios passos do sol. |
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Domingo na praça
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