sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Feijão


 Ipês enfeitam a praça 

insones; amarelos,

indiferentes a tudo que perdeu a graça


um cachorro vazio, um copo sem  fundo, um buraco no ventre, um ventre sem mundo


o assovio do moço de guarda-chuva

que não guarda nada

ou fosse só uma pomba, 

uma fresta, o voo sem plano

de uma traça


um corpo sem forma

um sono sem tempo

um medo do espelho


a cachoeira em silêncio 

drone, pipa, origami...

avião

antes do começo


um caule despetalado

mal me quer

uma cárie no caule 

do dente de leão

 quem me quer?


terça-feira, 25 de novembro de 2014

Oito meses

Oito meses sem você, Mãe, e eu aprendi uma saudade através do tempo. Não uma saudade dessas que a gente sente do quase presente, de quando estava tudo bem e te arrancaram de mim… Essa saudade eu sinto sempre: você avó de primeira viagem me socorrendo pra eu poder estudar ou ir pra balada. Avó de segunda viagem me salvando no México, me ensinando que a paciência é a alma da maternidade, do emprego, da vida… Essa saudade dói que mata. Mas tem saudade distante, também... saudade longe... saudade de tempos que nem sei se você lembraria.... Mas eu lembro de tudo... Saudade de ouvir você cantar se essa rua fosse minha, saudade de quando você queria mesmo que a rua fosse sua e juntou os vizinhos pra mudar a regra de trânsito. Eu achava um absurdo e você me mandava comprar pão de queijo pras visitas e não encher o saco.
Mas a saudade maior de todas é dos cinemas de sábado... Você não me poupava. Nunca vi tanto filme cabeça, ou “de arte” -como você dizia- quanto naqueles tempos... Eu não gostei de Fargo, você amou, eu amei Pulp Fiction e você achou forte, e a gente chorava até no trailer do Piano... Você me levava nas maratonas de Bergman, Antonioni e era só por sua causa que eu era uma pivete que saia por ai dizendo que sonhei que estava jogando xadrez com a morte.
Depois do cinema a gente ia jantar num restaurante simpático... Sabia que o Giovanni Bruno também morreu? A gente falava do filme, depois de política e você tentava me dar noções mínimas de macroeconomia pra eu entender seu ponto. Nunca entendia... acho que continuo não entendendo... Mas quando você voltou de lá de dentro de você mesma nos últimos tempos falando no Ótimo de Pareto, eu soube que você vivia mesmo num lugar mágico entre números e filmes e gastronomia e eu sinto tanta saudade disso também. Você andou pela Provence nos seus últimos sonhos. E você também estava dentro do Berlim Alexandre Platz, enquanto a gente fazia vigília e o médico, incrédulo, perguntava do que você estava falando. Sua inteligência dando baile na gente, até quando você já tinha perdido a consciência.... Sinto tanta saudade da sua inteligência... e sinto mais saudade da comida... da paella, do salmão com arroz de brócolis, da geleia de morango... Acabou de vez, Mãe. Não tem mais nenhuma geleia de morango no congelador...
E eu sinto tanta saudade ainda que toda vez que você me visita no sonho eu estrago tudo e começo a chorar... de saudade... e sinto saudade também das broncas. Das broncas através dos tempos. Você mandaria engolir o choro agora? Manda, Mãe, que eu ando tão chorona... Você me mandaria emagrecer, trabalhar menos, estudar mais, botar a cachorra pra fora. Você não iria aprovar a cachorra e eu sinto uma saudade quase transgressora cada vez que faço carinho nela.
E sinto saudade toda vez que leio o Roberto Bolaño e lembro que se você não tivesse ficado doente, e tido tempo pra passar tardes lendo romances, a gente não teria as obras completas dele aqui em casa. Edições da Anagrama, que você mandava vir de fora, que você também não tolerava traduções... Eu sinto saudade do próprio Bolaño, como se você e ele estivessem conectados em algum lugar num deserto distante na África. E ai eu sonho que você só estava fazendo uma viagem e que voltava, junto com ele e que essa história de morte era só uma piada de mau gosto. Que eu vi em algum filme... Sinto saudade da própria saudade nos momentos que me distraio dela. E penso que se você não me ensinou a rezar, foi você quem me ensinou a ler... e que foi num livro do João que eu aprendi que toda saudade é uma espécie de velhice.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Teu Jardim

Por não saber pra onde você foi, a gente foi ao teu jardim. Deitamos no cobertor sobre a grama que te cobre. Essa certeza ninguém nos tira. Teu corpo está ali, misturado com a terra que alimenta a grama e se a gente deitar em cima, tem um pouco de você no chão. Por sabermos pouco do teu jardim, fomos de noite, levando as crianças e acho que foi só por causa delas que o moço nos deixou entrar. 
E porque era de noite, Mãe, a lua estava cheia, ou quase cheia, mas tão linda, que eu fiquei feliz que fosse noite. E como era noite das mães, teu jardim, que é tão bonito, estava mais bonito ainda. Ou talvez fosse só o luar. Mas nós reparamos em quantas mães e avós também estão se misturando na terra do teu jardim, com tantas flores em vasos em cima da grama. Que pena que não pode plantar direto na terra. Porque se pudesse, eu plantava hortênsias como as de São Bento e uma horta, pra colher flores azuis e temperar a vida que anda meio sem graça sem você. Mas foi bonita a noite das mães, porque segue bonita a vida que você tanto amava. Ela segue bonita sem você. Bonita como encontrar um pote da tua geleia de morango no congelador. Bonita, Mãe… Você e a vida. Os meninos acenderam tanta vela que parecia uma fogueira. O teu pedaço do jardim era o único que brilhava. Teu jardim e a lua. Quando eu deitei sobre a coberta abraçada no teu neto que dormia, eu pensei assim, que antes eu precisava do som pra te escutar, e dos teus olhos pra você me enxergar. Agora eu só preciso deitar na grama, e acho que qualquer grama pode. Porque eu perdi o chão sem você. Quem é que não perdia? Mas se eu deitar bem deitada, todo chão é lugar pra me misturar com você… Foi bonita a noite das mães. Foi bonita também porque não foi dia. Porque a gente escapou das propagandas e das trocas de presentes; porque a gente escapou da celebração. Que tem dia que não devia fazer aniversário. Só pra lembrar a gente que a maternidade é um milagre. Que mesmo as formigas e as abelhas tendo filhos, toda criança quando nasce tem um pouco de menino jesus. Acendendo e apagando. Como as estrelas. Acendendo e apagando. E mesmo toda formiga, abelha ou Gabriel Garcia Marquez apagando, toda morte tem um tanto quase insuportável de tragédia. Precisa de vela! Pra comemorar ou pra rezar. Vela de bolo, vela de morto. Pra apagar num sopro ou esperar a cera esparramar. E fechar os olhos sempre pra fazer o pedido…Que é no escuro que a gente vê melhor. Foi bonita a noite das mães….

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

ROUPA SUJA


Saiu pra lavar roupa suja e levou um tiro na perna. Quando olhou pro saco vermelho soube que o sangue era seu. Não podia olhar pra sangue. Se pudesse, era médico, não contador. Mas os incontáveis apagões nos seus intentos de enfermeiro o demoveram da nobre ocupação. Era como um cão, um pastor alemão. Servia para contar os pares e os números primos. Sangue não.

A ambulância foi direto pras Clínicas. O bandido convalescente ao seu lado protestava. A Santa Casa estava ali do lado. Pra que iam pra tão longe? Mas voz de bandido é voto vencido. Então ele se pronunciou: “A Santa Casa é aqui do lado”.  Foi ignorado. Na ambulância cada um com seu ofício. O enfermeiro oxigenava os baleados. O motorista guiava. Os baleados sangravam.

Na UTI recebeu uma única visita. Era o delegado, avisando que seu amigo quase morreu. Mas ele não tinha amigos. “Que amigo, seu guarda?”. O bandido! Não tinha forças para contrariar.

Uma quarentena nas clínicas salvou sua perna da amputação. A muleta era sua única companheira. Voltou pra casa de ônibus, no assento dos desvalidos. Passou na lavanderia pra saber de suas roupas. Eram escassas. Ele era contador. A mocinha guardara cada peça mas estava de férias. O japonês puxou assunto: “Soube que seu amigo já está melhor”. Dessa vez, teve preguiça de contrariar. Se o acaso o fazia cúmplice do bandido no tiroteio que quase levou sua perna, quem era ele para discordar? Ele só contava. Não era feito pra argumentar.

Foi na escadaria do prédio sem elevador, em Santa Cecília, que soube a real sucessão dos fatos. Cada degrau que o porteiro o ajudava a subir era um detalhe insólito que ele perdera na vertigem dos tiros.

Quando atravessou a rua na manhã de agosto em que ele seria baleado, Abelardo Cruz, o dono do estacionamento, resolveu cobrar uma dívida de rinha de galo. João Pontes estava ocupado fumando maconha na casa de Evangelina .
“A do 5 B?”.
“A própria.”
“Traficante?”
“Óbvio.”
 O Pontes, laricado, foi comprar um saco de carolinas na padaria Nova Palmeiras. Quando abriu a porta do edifício, Cruz o surpreendeu. Vendo seus olhos vermelhos e sua cara de mal intencionado, fez logo a suposição errada, e advertiu: Pára de mexer com minha filha.
“A ruiva?”
“A própria.”
“Mas é ruiva mesmo?”
“Até o último fio do pentelho.”
Pontes, quando não fumava maconha, comia a filha de Abelardo Cruz. Mas essa manhã ele só estava provando uma remessa uruguaia que sobrevivera a entressafra. Nessa mesma exata hora uma moto parou do outro lado da rua. Pontes e Cruz de um lado. O motoboy de capacete e a ruiva, de rabo de cavalo. Ela saiu correndo. O pai correu atrás, soltando a cinta pra dar na menina. Enquanto isso, ele atravessava a rua pra lavar roupa suja. Não viu a ruiva, nem o Pontes, nem o Cruz. Ele lembrava de uma moto estacionada na faixa. Mas as motos vivem estacionadas nos lugares proibidos. Abelardo deu na ruiva, Pontes foi defender, o motoboy sacou o três-oitão, a policia viu tudo, e alguém disparou. O motoboy entrou na lavanderia.
“Eu só estava separando as brancas das coloridas”.

Destrancou os dois trincos de chave tetra. As janelas estavam abertas há quarenta dias. Os tacos onde a chuva caiu inclemente não resistiram. Ele contou: 42 tacos na vertical teriam que ser substituídos. Os da horizontal estavam intactos. Pegou as páginas amarelas da década passada, discou os seis dígitos do telefone de uma empresa de sinteco mas o número não existia mais.  Blasfemou, tirou a calça, ficou só de samba canção e gesso, os pés pra cima, pensando nos tacos. A campainha tocou.

Arrastou-se até a porta. Viu, caolho, pelo olho mágico, a ruiva, de cabelos soltos. Destrancou os dois trincos de chave tetra. Abriu a porta. Não precisou falar.

“Me deixa entrar, pelo amor de Deus. Como você demorou. Faz 40 dias que estou esperando você voltar pra casa. Me fala. Como ele está? Onde ele está?”

Quem? O amigo, óbvio. Agora até ele acreditava. A mulher do bandido estava ali, molhadinha em lágrimas. Assentiu: “Ele está bem. Mandou eu ficar de olho em você?”.

“Mandou? E por que ele não veio me ver?”
“Porque senão ele vai preso”.

Ela chorou mais. Ele ofereceu água com açúcar mas seu andar era tão débil que a ruiva se comoveu. Que casa suja! Ela limpou a bancada, passou um café, lavou os pratos com os fungos em quarentena. Tudo ali estava em decomposição. Ele era a própria imagem da desolação. Por um instante ela esqueceu do motoboy. Enxugou as lágrimas. Pegou uma caneta e assinou o gesso.

A perna quebrada atrapalhava um pouco. O gesso, a samba canção, o assoalho molhado. A ruiva no sofá, os cabelos soltos, a casa escura. Já era noite quando ela tirou a blusa. Já era noite quando ela tirou a calça. Ela sussurrava sandices na sua orelha de contador. Ele só queria olhar. Uma luz envergonhada entrava pela janela. Maldisse o veado do prefeito que acabou com os outdoors luminosos em Santa Cecília. Não podia acender a luz. Nunca soube a cor dos seus pentelhos. Ela deixou uma calcinha refém. “Mandinga de ruiva devassa”, o porteiro explicou. Era vermelha. Mas ele lavou no meio das roupas brancas.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A BARRIGA

Eu era pequena e eles me levavam nos restaurantes de noite porque não podiam pagar uma babá. Eu deitava no colo dela, com os pés sobre outra cadeira e escutava seu estômago digerindo o jantar. Os líquidos, então, para mim eram só bolhas. A barriga dela nunca tinha sido habitada por outra pessoa alem de mim ou da comida cubana e das cervejas- eu me lembro, era num restaurante cubano, e meu prato preferido era língua. Depois a barriga dela cresceu e eu me enfureci com dois meninos que chamaram ela de gorda. Eles deviam ter o meu tamanho, e eu, indignada, sem saber que o sentimento se chamava assim, dizia, se acaso eles não viam que na barriga dela tinha um bebê, e não comida. Porque eu sabia como a barriga dela ficava mesmo quando entrava muita comida. Eu deitava nela e escutava a digestão. Eu sabia de tanta coisa dela e do barulho da barriga dela, e da barriga dela crescendo com o meu irmão dentro. Eu sabia de tanta coisa então que depois o tempo me fez esquecer, e depois o tempo me fez não saber, ou saber tudo ao contrario, só pra discordar, e ai eu sabia quando ela se enfurecia, não pela barriga, porque eu não deitava mais lá, mas pelos olhos, e eu não sabia responder, e até hoje quando eu fico brava num sonho, eu tenho tanto a dizer e perco a voz. Mas pra ela, fora do sonho, eu disse coisas que eu não queria, ou não devia, ou queria, porque quando eu tava com raiva, e tinha aquela idade, eu era assim. Depois foi a minha barriga que cresceu, duas vezes, e a gente torceu pra ser menina, porque a gente queria que fosse menina, pra continuar como era, como éramos, só nos duas, quando eu deitava a cabeça na barriga dela no restaurante cubano. Mas eram sempre meninos que moravam na minha barriga e a gente comemorava mesmo assim. Porque os meninos são divinos, ela dizia. Depois uma coisa muito feia entrou na barriga dela eu queria entrar lá e arrancar todo aquele atrevimento, de entrar ali, naquele lugar dos barulhos e bolhas que eram meus, quando eu me cansava e me deitava. Metade no colo, metade na cadeira. Um dia ela sentou no sofá e sentia frio, e eu deitei na barriga dela só pra escutar. O barulho continuava o mesmo, mesmo depois que minha orelha cresceu. Ela enroscou os dedos nos meus cachinhos que ela detesta quando aliso e me chamou de coração. O coração dela, eu pensei, deve estar na barriga também.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Ó!

Do lado da sauna gay tem o puteiro. Do lado do puteiro tem o Ó. Você para diante da janela e olha. Se tiverem quatro gostosas você entra. Tem duas. E meia dúzia mal dormidas. Você entra mesmo assim. É destratado pelo segurança, não arruma lugar pra sentar, fica de pé entre os passistas, que dançam samba como antes se dançava forró. Mas você não vai embora. Porque pode ser que algo aconteça, que alguém tropece, que alguém perceba que tem gentileza na tua torpeza. Quando você começa a suspeitar que bebeu demais, tem fila pra pagar a conta, tem fila pro banheiro e o banheiro é unissex. Você para, braço cruzado, estilo blazê, só fitando a mulherada. Um cara entra e mija de porta aberta. Uma mina entra atrás, e fecha a porta. Eles demoram. Você desconfia. Ele sai na frente. Ela sai depois, gargalhando. E se fosse a mulher da tua vida, aquela devassa que entrou no banheiro? Não é.

Tuas costas doem e você nunca soube sambar. Começa a sentir o chocalho fatídico dos ossos, o fígado que vai se revoltar de manhã. Mas ainda é madrugada e de quem é essa voz pentelha a te aconselhar pelo muro do cemitério?

Ai então que você entra, rapaz, no cemitério de noite, como um delinqüente, como um merda dum maconheiro sem nada em cima, só porque você é bem louco. Você chapa numa tumba de mármore só porque tem um camafeu com o rosto de uma mina que morreu em 1923. Você acha que não existiam minas em 1923. Mas elas existiram.

As ruas tem letras. O cemitério é um grande camping de mausoléus ostensivos que te fazem lembrar que a Vila Madalena são os burgos. Se você tivesse crédito, mandava um torpedo pra ela, mas o teu descrédito não tem precedentes. Ela batia com a mãozinha histérica na buzina pra você sair da frente do carro porque você tava bêbado demais pra deixar a mulher da tua vida ir embora guiando o teu carro. E você perdeu a mulher, e o carro, e ainda vai ter que pagar pensão.

Quando tem estrela na noite paulistana é Venus. Alguém te disse isso e você nunca duvidou. Assim como você acreditou que azeite, quando esquenta, vira gordura trans, ou que no Butão tem qualidade de vida. Você verificou, por acaso, pra sair por ai dizendo essas coisas? Não verificou. Tua tese te dá vergonha. Você disfarça. Vai dizer que não dá?

Tem noites, meu velho, que era melhor ter entrado no puteiro!

sábado, 22 de outubro de 2011

BANCO DE COURO

O cabeleireiro lhe ensinou que as mulheres não envelhecem: ficam louras. Ela prefere acreditar que está mais interessante. É como vinho, como Carla Bruni. Só melhora com o tempo. Com os cabelos devidamente escuros e poucos fios brancos para delatar a idade, ela malha, trabalha, tem grana para comprar maquiagem importada, e ao fígaro -divaga em silêncio- compete o design de suas sobrancelhas. Prefere seu corpo hoje ao que era há uma década, quando a ditadura da cintura baixa a fazia odiar sua barriga. Hoje ela aposta no decote. E decote não depende de peito. Depende de lingerie.

Sabe que salto alto favorece as batatas e se equilibra nas alturas. Desdenha, com uma simpatia nostálgica, da chinesinha xexelenta de xiboquinha e cipó cravo que seu pai jogava no lixo quando ela voltava do forró. Sob protesto, ela argumentava: todo mundo devia ter só um sapato. Hoje tem sapateira. Seu closet é quase tão lindo quanto o da Carrie Bradshow. Quando sente fome nas horas tardias, não pede pizza, pede Temaki. Tem iphone, pacientes, amigas, um pai fanfarrão e uma solidão de gastrite dessas que costumam bater nas madrugadas frias. No verão é muito mais fácil ser solteira. O sol se encarrega dos prazeres da epiderme, o corpo corresponde em bronzeado, e nada como uma marquinha de biquíni para aplacar os ânimos de uma mulher aos trinta anos.

Os pacientes já pagam seu preço na íntegra. Não há nada que não seja maduro na sua conduta. A não ser pelos tipos raros que acordam ao seu lado, quando ela se excede na balada. São sempre iguais, o que varia é o endereço da casa de seus pais porque os caras com quem ela se amanceba não são emancipados: sonham em viver em Fernando de Noronha, não tem grana pra pagar a conta. É sempre para um desses que ela acaba dando mole. E quando são muito fofos e bons ouvintes, a relação pode se alastrar por dois anos, sem que ela jamais os apresente como namorados. De noite, reza para os anjos da guarda e conversa com Santo Antônio. No réveillon, baixo a chuva de fogos em Copacabana que ela vira pela primeira vez, o Santo lhe aferiu: “este ano o projeto é de mãos dadas”. Mas estamos em setembro e ela segue solitária.

Essa noite ela ainda não rezou porque pretende dormir muito mais tarde. As amigas estão no banheiro do seu apezinho alugado em Perdizes. Ela tem um estojo de maquiagens invejável. E aprendeu o ofício no site da Julia Petit. Está perfeita: batom nude, e o nude é o novo Black, diz sua melhor amiga publicitária. Olhos reforçados em lápis preto, estilo Amy Whinehouse, cabelo de gringa (aquele coque solto em que os fios se esparramam pelos ombros despenteados), blusinha tomara que caia, calça justa, sapato meia pata. Hoje ela vai pra guerra. A balada é corriqueira. Festinha na laje, casa da Fecê, amigo desde a quarta-série. A mesma balada brancodrama dos últimos 20 anos. É amiga do DJ e o DJ sabe que a mulherada dança melhor em português.

Ás vezes o esquenta é bem melhor que o evento. Amigas reunidas experimentando roupas, exibindo as calcinhas novas, maldizendo as próprias bundas, exorcizando celulite, tomando caipirinha de saque com adoçante, obviamente. Camarada faria tudo para estar ali, invisível, vendo as meninas de topless, troca- troca de blusinha, birita, baseado, gargalhada e apenas uma pauta monotemática, em várias derivações que nunca perdem o eixo: homem. Só falam de homem. As casadas reclamam, as solteiras também, comentam os gatinhos da repescagem. Ela só tem esperança ali: na repescagem. Um dia, um cara incrível, separado e superado o trauma, ainda há de seu príncipe. Mas essa noite a diversão começou em casa e não tem problema se não tiver ninguém interessante na laje do Fecê, o que aliás, é o mais provável. Figurinha repetida não completa álbum, afinal.

Saem em dois carros, param no posto, compram cerveja e gelo. Chegam naquele horário estratégico: balada bombando, breja rareando e oito deusas com oito caixas e um saco de gelo na mão. Se sentem numa propaganda da Brahma. Quase isso, à diferença que tem pós graduação, um trampo desafiante e muito repertório. Ela, além de boa leitora, cinéfila, gourmet e fashionista, manja de futebol. E manja de verdade. Não como a maioria das mulheres que arrisca falar de futebol só pra fazer pressão. Ela é flamenguista. E sabe do que está falando. Assiste mesa redonda no domingo, e não troca por nenhum filme com o Rodrigo Santoro. Futebol, pra ela, é coisa séria.

Por isso mesmo, os caras, essa noite já chegam aloprando. O Flamengo perdeu a liderança para um time paulista, e ali, na laje do Fecê, só ela, ninguém mais, é flamenguista. Quando se dá conta, breja numa mão, cigarrinho de filtro branco na outra, do alto de suas sandálias meia pata, está ela, boca suja, falando alto, discutindo o impedimento com um conhecimento de causa arrebatador. Bate um bolão, definitivamente, e também por isso mesmo, boa parte da rapaziada não se atreve: quem banca? Bem sucedida, boa de verdade, bom gosto, bom berço, bom papo e boleira. É muita responsabilidade. E ela vai colecionando amigo macho.

Começa o samba. Ela vai pra roda. A meia pata atrapalha um pouco, mas ela samba direitinho. Está totalmente confortável apesar do salto. É uma noite feliz, e que importa, no fim, se vai dormir sozinha? Mas é quando menos se espera uma inflexão que ela acontece, assim como um acidente de carro. Ela samba, dá voltinha, paradinha, bambeia, faz que cai, não cai. Ele a segura. Como é bonito. Suas mãos na cintura fina dela. Nunca tinham se visto. Era primo do amigo de não sei quem. Não falam. Só beijam. A saliva combina. A pele combina. O samba é romântico.

Ele é corinthiano, o que, para uma flamenguista, é menos problemático do que ser são paulino. Ele é solteiro. Ele é CLT. Ele conjuga os esses. Ele serve seu copo de vinho. Ele oferece o casaco quando ela sente frio. Ele a respeita. Ele carrega sua bolsa. Quando ele abre a porta do carro – prática que somente um percentual mínimo de cavalheiros de rara estirpe ainda preserva- o carro da porta em questão é um AUDI.

No caminho, ela só pensa numa coisa: “Por que um AUDI?”. Se ele tem cem mil reais para torrar num carro, por que um Audi e não um Land Rover, ou qualquer outro carro que justifique gastar tanto em quatro rodas? Um Audi não encara barranco, estrada de terra, buraqueira. Um Audi não é econômico. Audi é carro de tiazinha que não tem competência pra dirigir uma blazer. E ela por princípio, abomina tiazinhas de blazer. “Por que um Audi?” . E se for dos pais dele? Se for dos pais dele, ela já sabe que ele é do tipo que sonha em viver em Fernando de Noronha. E pior: antes um pé rapado que mora com os pais do que um playboy que mora com os pais. Ela não sabe bem porque acredita nisso. Faz parte de seus princípios. Talvez porque sua vida tenha sido uma eterna labuta. Talvez porque tenha se acostumado a viver com o constante problema da falta de grana... Talvez porque a simples ideia do investimento num carro paga pau com banco de couro- a mesma grana que poderia dar entrada na casa própria que ninguém da sua família jamais teve- a deixe com náuseas. Ela bebeu pouco. Mas o cheiro do couro é foda!

Ela pede pra ir pra casa. Ele respeita. Abre a porta do carro, ela não dá explicações, nem beijos, nem esperanças, nem telefone. Bate a porta do Audi e entra na portaria. “Por que lindo se dirigia um Audi?”. "Por que dirigia um Audi, se lindo”. Está tudo errado! Não vai rezar pros anjos da guarda. Não vai falar com o Santo. Hoje ele passou dos limites. "Um Audi!!!"