quarta-feira, 14 de agosto de 2013

ROUPA SUJA


Saiu pra lavar roupa suja e levou um tiro na perna. Quando olhou pro saco vermelho soube que o sangue era seu. Não podia olhar pra sangue. Se pudesse, era médico, não contador. Mas os incontáveis apagões nos seus intentos de enfermeiro o demoveram da nobre ocupação. Era como um cão, um pastor alemão. Servia para contar os pares e os números primos. Sangue não.

A ambulância foi direto pras Clínicas. O bandido convalescente ao seu lado protestava. A Santa Casa estava ali do lado. Pra que iam pra tão longe? Mas voz de bandido é voto vencido. Então ele se pronunciou: “A Santa Casa é aqui do lado”.  Foi ignorado. Na ambulância cada um com seu ofício. O enfermeiro oxigenava os baleados. O motorista guiava. Os baleados sangravam.

Na UTI recebeu uma única visita. Era o delegado, avisando que seu amigo quase morreu. Mas ele não tinha amigos. “Que amigo, seu guarda?”. O bandido! Não tinha forças para contrariar.

Uma quarentena nas clínicas salvou sua perna da amputação. A muleta era sua única companheira. Voltou pra casa de ônibus, no assento dos desvalidos. Passou na lavanderia pra saber de suas roupas. Eram escassas. Ele era contador. A mocinha guardara cada peça mas estava de férias. O japonês puxou assunto: “Soube que seu amigo já está melhor”. Dessa vez, teve preguiça de contrariar. Se o acaso o fazia cúmplice do bandido no tiroteio que quase levou sua perna, quem era ele para discordar? Ele só contava. Não era feito pra argumentar.

Foi na escadaria do prédio sem elevador, em Santa Cecília, que soube a real sucessão dos fatos. Cada degrau que o porteiro o ajudava a subir era um detalhe insólito que ele perdera na vertigem dos tiros.

Quando atravessou a rua na manhã de agosto em que ele seria baleado, Abelardo Cruz, o dono do estacionamento, resolveu cobrar uma dívida de rinha de galo. João Pontes estava ocupado fumando maconha na casa de Evangelina .
“A do 5 B?”.
“A própria.”
“Traficante?”
“Óbvio.”
 O Pontes, laricado, foi comprar um saco de carolinas na padaria Nova Palmeiras. Quando abriu a porta do edifício, Cruz o surpreendeu. Vendo seus olhos vermelhos e sua cara de mal intencionado, fez logo a suposição errada, e advertiu: Pára de mexer com minha filha.
“A ruiva?”
“A própria.”
“Mas é ruiva mesmo?”
“Até o último fio do pentelho.”
Pontes, quando não fumava maconha, comia a filha de Abelardo Cruz. Mas essa manhã ele só estava provando uma remessa uruguaia que sobrevivera a entressafra. Nessa mesma exata hora uma moto parou do outro lado da rua. Pontes e Cruz de um lado. O motoboy de capacete e a ruiva, de rabo de cavalo. Ela saiu correndo. O pai correu atrás, soltando a cinta pra dar na menina. Enquanto isso, ele atravessava a rua pra lavar roupa suja. Não viu a ruiva, nem o Pontes, nem o Cruz. Ele lembrava de uma moto estacionada na faixa. Mas as motos vivem estacionadas nos lugares proibidos. Abelardo deu na ruiva, Pontes foi defender, o motoboy sacou o três-oitão, a policia viu tudo, e alguém disparou. O motoboy entrou na lavanderia.
“Eu só estava separando as brancas das coloridas”.

Destrancou os dois trincos de chave tetra. As janelas estavam abertas há quarenta dias. Os tacos onde a chuva caiu inclemente não resistiram. Ele contou: 42 tacos na vertical teriam que ser substituídos. Os da horizontal estavam intactos. Pegou as páginas amarelas da década passada, discou os seis dígitos do telefone de uma empresa de sinteco mas o número não existia mais.  Blasfemou, tirou a calça, ficou só de samba canção e gesso, os pés pra cima, pensando nos tacos. A campainha tocou.

Arrastou-se até a porta. Viu, caolho, pelo olho mágico, a ruiva, de cabelos soltos. Destrancou os dois trincos de chave tetra. Abriu a porta. Não precisou falar.

“Me deixa entrar, pelo amor de Deus. Como você demorou. Faz 40 dias que estou esperando você voltar pra casa. Me fala. Como ele está? Onde ele está?”

Quem? O amigo, óbvio. Agora até ele acreditava. A mulher do bandido estava ali, molhadinha em lágrimas. Assentiu: “Ele está bem. Mandou eu ficar de olho em você?”.

“Mandou? E por que ele não veio me ver?”
“Porque senão ele vai preso”.

Ela chorou mais. Ele ofereceu água com açúcar mas seu andar era tão débil que a ruiva se comoveu. Que casa suja! Ela limpou a bancada, passou um café, lavou os pratos com os fungos em quarentena. Tudo ali estava em decomposição. Ele era a própria imagem da desolação. Por um instante ela esqueceu do motoboy. Enxugou as lágrimas. Pegou uma caneta e assinou o gesso.

A perna quebrada atrapalhava um pouco. O gesso, a samba canção, o assoalho molhado. A ruiva no sofá, os cabelos soltos, a casa escura. Já era noite quando ela tirou a blusa. Já era noite quando ela tirou a calça. Ela sussurrava sandices na sua orelha de contador. Ele só queria olhar. Uma luz envergonhada entrava pela janela. Maldisse o veado do prefeito que acabou com os outdoors luminosos em Santa Cecília. Não podia acender a luz. Nunca soube a cor dos seus pentelhos. Ela deixou uma calcinha refém. “Mandinga de ruiva devassa”, o porteiro explicou. Era vermelha. Mas ele lavou no meio das roupas brancas.

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