Saiu
pra lavar roupa suja e levou um tiro na perna. Quando olhou pro saco vermelho
soube que o sangue era seu. Não podia olhar pra sangue. Se pudesse, era médico,
não contador. Mas os incontáveis apagões nos seus intentos de enfermeiro o demoveram
da nobre ocupação. Era como um cão, um pastor alemão. Servia para contar os pares
e os números primos. Sangue não.
A
ambulância foi direto pras Clínicas. O bandido convalescente ao seu lado
protestava. A Santa Casa estava ali do lado. Pra que iam pra tão longe? Mas voz
de bandido é voto vencido. Então ele se pronunciou: “A Santa Casa é aqui do
lado”. Foi ignorado. Na ambulância
cada um com seu ofício. O enfermeiro oxigenava os baleados. O motorista guiava.
Os baleados sangravam.
Na
UTI recebeu uma única visita. Era o delegado, avisando que seu amigo quase
morreu. Mas ele não tinha amigos. “Que amigo, seu guarda?”. O bandido! Não
tinha forças para contrariar.
Uma
quarentena nas clínicas salvou sua perna da amputação. A muleta era sua única
companheira. Voltou pra casa de ônibus, no assento dos desvalidos. Passou na
lavanderia pra saber de suas roupas. Eram escassas. Ele era contador. A mocinha
guardara cada peça mas estava de férias. O japonês puxou assunto: “Soube que
seu amigo já está melhor”. Dessa vez, teve preguiça de contrariar. Se o acaso o
fazia cúmplice do bandido no tiroteio que quase levou sua perna, quem era ele
para discordar? Ele só contava. Não era feito pra argumentar.
Foi
na escadaria do prédio sem elevador, em Santa Cecília, que soube a real
sucessão dos fatos. Cada degrau que o porteiro o ajudava a subir era um detalhe
insólito que ele perdera na vertigem dos tiros.
Quando
atravessou a rua na manhã de agosto em que ele seria baleado, Abelardo Cruz, o
dono do estacionamento, resolveu cobrar uma dívida de rinha de galo. João
Pontes estava ocupado fumando maconha na casa de Evangelina .
“A
do 5 B?”.
“A
própria.”
“Traficante?”
“Óbvio.”
O Pontes, laricado, foi comprar um saco
de carolinas na padaria Nova Palmeiras. Quando abriu a porta do edifício, Cruz o
surpreendeu. Vendo seus olhos vermelhos e sua cara de mal intencionado, fez
logo a suposição errada, e advertiu: Pára de mexer com minha filha.
“A
ruiva?”
“A
própria.”
“Mas
é ruiva mesmo?”
“Até
o último fio do pentelho.”
Pontes,
quando não fumava maconha, comia a filha de Abelardo Cruz. Mas essa manhã ele
só estava provando uma remessa uruguaia que sobrevivera a entressafra. Nessa
mesma exata hora uma moto parou do outro lado da rua. Pontes e Cruz de um lado.
O motoboy de capacete e a ruiva, de rabo de cavalo. Ela saiu correndo. O pai
correu atrás, soltando a cinta pra dar na menina. Enquanto isso, ele
atravessava a rua pra lavar roupa suja. Não viu a ruiva, nem o Pontes, nem o
Cruz. Ele lembrava de uma moto estacionada na faixa. Mas as motos vivem
estacionadas nos lugares proibidos. Abelardo deu na ruiva, Pontes foi defender,
o motoboy sacou o três-oitão, a policia viu tudo, e alguém disparou. O motoboy
entrou na lavanderia.
“Eu
só estava separando as brancas das coloridas”.
Destrancou
os dois trincos de chave tetra. As janelas estavam abertas há quarenta dias. Os
tacos onde a chuva caiu inclemente não resistiram. Ele contou: 42 tacos na
vertical teriam que ser substituídos. Os da horizontal estavam intactos. Pegou
as páginas amarelas da década passada, discou os seis dígitos do telefone de
uma empresa de sinteco mas o número não existia mais. Blasfemou, tirou a calça, ficou só de
samba canção e gesso, os pés pra cima, pensando nos tacos. A campainha tocou.
Arrastou-se
até a porta. Viu, caolho, pelo olho mágico, a ruiva, de cabelos soltos.
Destrancou os dois trincos de chave tetra. Abriu a porta. Não precisou falar.
“Me
deixa entrar, pelo amor de Deus. Como você demorou. Faz 40 dias que estou
esperando você voltar pra casa. Me fala. Como ele está? Onde ele está?”
Quem?
O amigo, óbvio. Agora até ele acreditava. A mulher do bandido estava ali,
molhadinha em lágrimas. Assentiu: “Ele está bem. Mandou eu ficar de olho em
você?”.
“Mandou?
E por que ele não veio me ver?”
“Porque
senão ele vai preso”.
Ela
chorou mais. Ele ofereceu água com açúcar mas seu andar era tão débil que a
ruiva se comoveu. Que casa suja! Ela limpou a bancada, passou um café, lavou os
pratos com os fungos em quarentena. Tudo ali estava em decomposição. Ele era a
própria imagem da desolação. Por um instante ela esqueceu do motoboy. Enxugou
as lágrimas. Pegou uma caneta e assinou o gesso.
A
perna quebrada atrapalhava um pouco. O gesso, a samba canção, o assoalho
molhado. A ruiva no sofá, os cabelos soltos, a casa escura. Já era noite quando
ela tirou a blusa. Já era noite quando ela tirou a calça. Ela sussurrava
sandices na sua orelha de contador. Ele só queria olhar. Uma luz envergonhada
entrava pela janela. Maldisse o veado do prefeito que acabou com os outdoors
luminosos em Santa Cecília. Não podia acender a luz. Nunca soube a cor dos seus
pentelhos. Ela deixou uma calcinha refém. “Mandinga de ruiva devassa”, o
porteiro explicou. Era vermelha. Mas ele lavou no meio das roupas brancas.
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