Levava a bandeira e caminhava nu entre os olhares atentos das lagartixas brancas. Em marcha determinada, direcionava-se até a porta da rua. Escancarava. Fazia-se a luz. Ele erguia a cabeça num gesto heróico, sacudia seu semblante em ginga ritmada, e adubava seu planeta, para o delírio escandalizado das margaridas. As pedras recobriam-no de sobriedade; baixava os olhos, reconhecia seu sexo, hasteava sua bandeira e continuava nu.
O jornal caiu sobre uma de suas tulipas. Isto o enfureceu. Era fúria recorrente, pelo mesmo velho motivo. “Por que não acertam as violetas?” Das violetas não gostava. Recolheu o jornal, cobriu o corpo e correu para a rua.
Foi a pé. Fazia isto toda vez que se lembrava de Mariana. Ela só gostava de violetas, mas não sabia regá-las, não tinha a ginga. E ele se sentia mais viril.
Na Consolação, um motorista atropelou um moto boy, mas não o comoveu. Afinal, acontecia todo dia..., e era bom pro solo. Olhou para o corpo morto, sangrento e sentiu fome. Comeria um misto quando chegasse no banco, mas naquela hora ele queria picanha. E ria-se. Lembrava de Mariana, ela teria chorado, bateria com sua mãozinha pequena e branquela sobre seu peito peludo e num ruído miúdo que evidencia a estupidez feminina lhe chamaria de monstro.
Contou os cocôs que encontrava na calçada. Haviam diminuído nos últimos anos. As pessoas agora tinham aquele hábito cretino de andar com as sacolinhas de plástico. E colocavam a sacolinha na bolsa e achavam-se higiênicas. Consternava-se. Via a apatia das plantinhas mal adubadas nos canteiros e sentia-se impotente. Mais impotente do que o morto. Porque o seu ceticismo lhe ensinara a gostar da morte, e ele recobria novamente sua sobriedade, lembrava das pedras, e apressava o passo. Afinal, era vivo e precisava trabalhar. (E o morto agora ia virar terra, jurou plantar uma violeta pra desencargo de consciência. Fazia assim o seu ritual fúnebre e se redimia com as possíveis autoridades dissentes.)
Comeu seu misto preocupado com as horas mas foi em vão. Era feriado bancário, e ele poderia cortar a grama. Deu meia volta, retomou seu caminho pra casa, pelo outro lado da rua pra poder contar novas variedade de excrementos caninos. Além de passar o tempo, ele não sujava os pés. Odiava distrair-se e naquele dia ele já havia esquecido do feriado.
Se Mariana tivesse acordado ao seu lado ele não esqueceria. Porque a Mariana era meticulosa, nunca cometia erros, e ele odiava perder pra ela. Se por um único instante pudesse por suas mãos sobre seu pescocinho branco... talvez o entregador de jornais não acertasse mais suas tulipas.
No cruzamento da Consolação com a Praça Roosvelt, viu o corpo do morto. Continuava ali. O tempo passou pra ele mas não pro morto. Estava ali porque pra morte não tem tempo, nem percurso, nem fezes nas calçadas. Permanecia ali pra lembrar os vivos que morrer é eterno. E um súbito frio subiu por sua espinha, um frio carregado de sentimentalismo terreno. Catarrou no chão e quis chorar. Sentia o pulsar do tempo nas suas veias e desejou que fosse seiva. Olhou pro morto e já não teve fome. Quis juntar-se a ele, naquela dança harmônica dos corpos gelados. Quis roçar seu corpo no dele como as lagartixas nas paredes úmidas. Porque tinha um vazamento no cano da cozinha. Porque a água dos canos vazava e a sua seiva estagnou ali, bruta, gélida e estática. E ele não era planta. Abraçou o morto, levou-o nos braços até os jardins da praça. Tirou suas roupas, cavou uma cova rasa e o enterrou. Nunca mais passou por ali, porque sabia que ali nasceriam violetas.
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Assinar:
Postagens (Atom)