Oito meses sem você, Mãe, e eu aprendi uma saudade através do tempo. Não uma saudade dessas que a gente sente do quase presente, de quando estava tudo bem e te arrancaram de mim… Essa saudade eu sinto sempre: você avó de primeira viagem me socorrendo pra eu poder estudar ou ir pra balada. Avó de segunda viagem me salvando no México, me ensinando que a paciência é a alma da maternidade, do emprego, da vida… Essa saudade dói que mata. Mas tem saudade distante, também... saudade longe... saudade de tempos que nem sei se você lembraria.... Mas eu lembro de tudo... Saudade de ouvir você cantar se essa rua fosse minha, saudade de quando você queria mesmo que a rua fosse sua e juntou os vizinhos pra mudar a regra de trânsito. Eu achava um absurdo e você me mandava comprar pão de queijo pras visitas e não encher o saco.
Mas a saudade maior de todas é dos cinemas de sábado... Você não me poupava. Nunca vi tanto filme cabeça, ou “de arte” -como você dizia- quanto naqueles tempos... Eu não gostei de Fargo, você amou, eu amei Pulp Fiction e você achou forte, e a gente chorava até no trailer do Piano... Você me levava nas maratonas de Bergman, Antonioni e era só por sua causa que eu era uma pivete que saia por ai dizendo que sonhei que estava jogando xadrez com a morte.
Depois do cinema a gente ia jantar num restaurante simpático... Sabia que o Giovanni Bruno também morreu? A gente falava do filme, depois de política e você tentava me dar noções mínimas de macroeconomia pra eu entender seu ponto. Nunca entendia... acho que continuo não entendendo... Mas quando você voltou de lá de dentro de você mesma nos últimos tempos falando no Ótimo de Pareto, eu soube que você vivia mesmo num lugar mágico entre números e filmes e gastronomia e eu sinto tanta saudade disso também. Você andou pela Provence nos seus últimos sonhos. E você também estava dentro do Berlim Alexandre Platz, enquanto a gente fazia vigília e o médico, incrédulo, perguntava do que você estava falando. Sua inteligência dando baile na gente, até quando você já tinha perdido a consciência.... Sinto tanta saudade da sua inteligência... e sinto mais saudade da comida... da paella, do salmão com arroz de brócolis, da geleia de morango... Acabou de vez, Mãe. Não tem mais nenhuma geleia de morango no congelador...
E eu sinto tanta saudade ainda que toda vez que você me visita no sonho eu estrago tudo e começo a chorar... de saudade... e sinto saudade também das broncas. Das broncas através dos tempos. Você mandaria engolir o choro agora? Manda, Mãe, que eu ando tão chorona... Você me mandaria emagrecer, trabalhar menos, estudar mais, botar a cachorra pra fora. Você não iria aprovar a cachorra e eu sinto uma saudade quase transgressora cada vez que faço carinho nela.
E sinto saudade toda vez que leio o Roberto Bolaño e lembro que se você não tivesse ficado doente, e tido tempo pra passar tardes lendo romances, a gente não teria as obras completas dele aqui em casa. Edições da Anagrama, que você mandava vir de fora, que você também não tolerava traduções... Eu sinto saudade do próprio Bolaño, como se você e ele estivessem conectados em algum lugar num deserto distante na África. E ai eu sonho que você só estava fazendo uma viagem e que voltava, junto com ele e que essa história de morte era só uma piada de mau gosto. Que eu vi em algum filme... Sinto saudade da própria saudade nos momentos que me distraio dela. E penso que se você não me ensinou a rezar, foi você quem me ensinou a ler... e que foi num livro do João que eu aprendi que toda saudade é uma espécie de velhice.