sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A BARRIGA

Eu era pequena e eles me levavam nos restaurantes de noite porque não podiam pagar uma babá. Eu deitava no colo dela, com os pés sobre outra cadeira e escutava seu estômago digerindo o jantar. Os líquidos, então, para mim eram só bolhas. A barriga dela nunca tinha sido habitada por outra pessoa alem de mim ou da comida cubana e das cervejas- eu me lembro, era num restaurante cubano, e meu prato preferido era língua. Depois a barriga dela cresceu e eu me enfureci com dois meninos que chamaram ela de gorda. Eles deviam ter o meu tamanho, e eu, indignada, sem saber que o sentimento se chamava assim, dizia, se acaso eles não viam que na barriga dela tinha um bebê, e não comida. Porque eu sabia como a barriga dela ficava mesmo quando entrava muita comida. Eu deitava nela e escutava a digestão. Eu sabia de tanta coisa dela e do barulho da barriga dela, e da barriga dela crescendo com o meu irmão dentro. Eu sabia de tanta coisa então que depois o tempo me fez esquecer, e depois o tempo me fez não saber, ou saber tudo ao contrario, só pra discordar, e ai eu sabia quando ela se enfurecia, não pela barriga, porque eu não deitava mais lá, mas pelos olhos, e eu não sabia responder, e até hoje quando eu fico brava num sonho, eu tenho tanto a dizer e perco a voz. Mas pra ela, fora do sonho, eu disse coisas que eu não queria, ou não devia, ou queria, porque quando eu tava com raiva, e tinha aquela idade, eu era assim. Depois foi a minha barriga que cresceu, duas vezes, e a gente torceu pra ser menina, porque a gente queria que fosse menina, pra continuar como era, como éramos, só nos duas, quando eu deitava a cabeça na barriga dela no restaurante cubano. Mas eram sempre meninos que moravam na minha barriga e a gente comemorava mesmo assim. Porque os meninos são divinos, ela dizia. Depois uma coisa muito feia entrou na barriga dela eu queria entrar lá e arrancar todo aquele atrevimento, de entrar ali, naquele lugar dos barulhos e bolhas que eram meus, quando eu me cansava e me deitava. Metade no colo, metade na cadeira. Um dia ela sentou no sofá e sentia frio, e eu deitei na barriga dela só pra escutar. O barulho continuava o mesmo, mesmo depois que minha orelha cresceu. Ela enroscou os dedos nos meus cachinhos que ela detesta quando aliso e me chamou de coração. O coração dela, eu pensei, deve estar na barriga também.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Ó!

Do lado da sauna gay tem o puteiro. Do lado do puteiro tem o Ó. Você para diante da janela e olha. Se tiverem quatro gostosas você entra. Tem duas. E meia dúzia mal dormidas. Você entra mesmo assim. É destratado pelo segurança, não arruma lugar pra sentar, fica de pé entre os passistas, que dançam samba como antes se dançava forró. Mas você não vai embora. Porque pode ser que algo aconteça, que alguém tropece, que alguém perceba que tem gentileza na tua torpeza. Quando você começa a suspeitar que bebeu demais, tem fila pra pagar a conta, tem fila pro banheiro e o banheiro é unissex. Você para, braço cruzado, estilo blazê, só fitando a mulherada. Um cara entra e mija de porta aberta. Uma mina entra atrás, e fecha a porta. Eles demoram. Você desconfia. Ele sai na frente. Ela sai depois, gargalhando. E se fosse a mulher da tua vida, aquela devassa que entrou no banheiro? Não é.

Tuas costas doem e você nunca soube sambar. Começa a sentir o chocalho fatídico dos ossos, o fígado que vai se revoltar de manhã. Mas ainda é madrugada e de quem é essa voz pentelha a te aconselhar pelo muro do cemitério?

Ai então que você entra, rapaz, no cemitério de noite, como um delinqüente, como um merda dum maconheiro sem nada em cima, só porque você é bem louco. Você chapa numa tumba de mármore só porque tem um camafeu com o rosto de uma mina que morreu em 1923. Você acha que não existiam minas em 1923. Mas elas existiram.

As ruas tem letras. O cemitério é um grande camping de mausoléus ostensivos que te fazem lembrar que a Vila Madalena são os burgos. Se você tivesse crédito, mandava um torpedo pra ela, mas o teu descrédito não tem precedentes. Ela batia com a mãozinha histérica na buzina pra você sair da frente do carro porque você tava bêbado demais pra deixar a mulher da tua vida ir embora guiando o teu carro. E você perdeu a mulher, e o carro, e ainda vai ter que pagar pensão.

Quando tem estrela na noite paulistana é Venus. Alguém te disse isso e você nunca duvidou. Assim como você acreditou que azeite, quando esquenta, vira gordura trans, ou que no Butão tem qualidade de vida. Você verificou, por acaso, pra sair por ai dizendo essas coisas? Não verificou. Tua tese te dá vergonha. Você disfarça. Vai dizer que não dá?

Tem noites, meu velho, que era melhor ter entrado no puteiro!