A CET registrava 200 km de lentidão na capital paulista, índice muito acima da média para o dia e horário. Marginal Tietê alagada, morosidade no corredor norte e sul e pânico deflagrado na entrada do túnel Ayrton Senna. Arrastões e blitz se espalhavam pelos pontos de maior concentração humana motorizada. Nenhum helicóptero pode registrar os ocorridos. Chovia há dias e chovia pedras. Os carros buscavam um estacionamento coberto aonde fosse, a fim de evitar danos ao capô. Os taxistas eram os mais prudentes. Um alvará, num ponto como o aeroporto de Guarulhos, valia 500 mil reais.
“Prefiro andar pelas beiradas das ruas, que é onde alaga menos.”
“Mas o carro é seu ou é da frota?”, perguntou Bianca, recém chegada da Bahia, tentando atinar a resposta que acabara de ouvir, ainda um tanto indignada com os 120 reais que tivera que pagar no aeroporto para ser transportada até sua casa na Vila Madalena.
Para o taxista a pergunta era uma ofensa. São Paulo é uma sociedade em que as castas se preservam nas certezas imprecisas conjecturadas sobre o desconhecido. Um taxista tinha que pertencer a uma classe menos empoderada, razão pela qual evitava o centro das ruas quando a cidade alagava. Não aprendia empiricamente como os trabalhadores dos campos. Ou das praias paradisíacas em que paulistanas tomavam cachaça da terra e se enroscavam com nativos sarados. Os taxistas trafegavam pelos cantos entupidos, beirando as bocas de lobo, relembrando os tempos em que a administração pública pertencia a Paulo Maluf. Uma paulistana da Vila Madalena não suspeitaria jamais, que o um alvará da guarocoop pudesse valer o mesmo que o apartamento que ganhara de seus pais, na rua Harmonia.
“Moço, vou descer aqui mesmo”, disse ela, quando o táxi dobrou a esquina da Rodesia com a Jericó. Era quarta-feira, hora do futebol. As meninas estariam no bar e ela nem precisava passar em casa. O espelho do avião confirmara: a pele estava preta, sem máculas, a marca do biquíni valorizava o decote. “Deusa”, disse para si. E decidiu esquecer o capoeira que subia em coqueiros. As leis higienistas da cidade serviam, pelo menos, para alguma coisa. O lado de fora era e o melhor lugar da balada sempre. A chuva arrefecera. As brasas iluminavam a calçada. Um abraço coletivo, a mala que veio da Bahia, a surpresa da mulherada. Tropeço nas palavras e nos torcedores, histeria, futebol e decote na ditadura insana da noite. Bianca era um pouco anacrônica. O colágeno não correspondia a sua idade. Era bem sucedida, gostosa, assertiva. Mas passava as ferias na eterna Bahia de sua adolescência, tão remota para as amigas, disputando os mesmos nativos com garotas que tinham a metade da sua idade. “Chega de capoeira, cara acampado e coroa da night, Bianca! Porque você não pega alguém decente? ”, diziam as amigas, casadas e carentes de elogios. Seus caras decentes eram homens de poucas palavras: sem ciúmes, sem grana e sem graça. “Meu pai me ensinou que eu sou a cerejinha do bolo”, guardava para si. Não casaria só porque era hora de casar. Não passaria o resto da vida trabalhando em terapia uma forma eficaz de levar qualquer casamento, sentindo, a cada soluço, uma necessidade inexplicável de doar seu charme e outros atributos naturais de sua linhagem. Bianca era gata. Sua mãe era gata. Sua avó era gata. “Me deixa”, dizia, quase arrependida de não ter voltado direto pra casa.
Na madrugada se perdem os pruridos, a noção das horas e as palavras gastas. Na madrugada, uma mulher de trinta anos tem apenas idade suficiente para dirigir sozinha e fugir do bafômetro. Mas Bianca estava a pé. O argumento era safado e ela não resistia a um caudal de palavras sujas. “Melhor não”, mentiam os lábios enquanto o corpo todo dizia sim. O carro de um desconhecido entrava pela garagem e as mãos do motorista a acariciavam por baixo de uma penugem discreta, que insistira em crescer durante as férias, estragando aquilo que as profissionais da cera batizaram, por catalogação do ofício, de depilação semi intima e que podia variar de 20 a 43 reais. Transaram nem bem ele fechou a porta do apartamento.
Acordou pelada, no chão da sala. Os olhos turvos reconheceram suas roupas espalhadas pelo chão. “A mala, puta que pariu”. Queria sair de lá sem ser vista, dar bom dia ao porteiro e chegar em casa, pela primeira vez, desde o natal.
“Acordou, gatinha?”, disse um cara de toalha e havaianas. Ela acenou com a cabeça. “Quer café?”, ele perguntou, enquanto colocava água para esquentar. O fogão era de inox. A cozinha se integrava a sala como no cenário de um filme em que o George Clooney fazia papel de solteiro. Do galã, o cara de toalhas e havaianas na sua frente só tinha os grisalhos. “Os pentelhos ficam grisalhos?”, vagueou seu pensamento sem conseguir lembrar. “Você sabe da minha mala?”. Ele negou. Nem sabia que trazia uma mala consigo. “Preciso ir”, ela disse. E ele não disse nada para impedir. Ela foi. Desceu as escadas correndo. Estava na porta de entrada de um prédio sem elevador, numa avenida larga, de mão única, num canto desconhecido de São Paulo. Acenou para um taxi. A precipitação se insinuava mais uma vez sobre a cidade. “Só chove nessa merda”.
O motorista tinha mais de sessenta anos. “Moço, eu vou pra Vila Madalena”, disse Bianca.
“Eu posso te levar até lá, mas vou por dentro e vai ficar mais caro, porque a marginal tá interditada desde ontem”, advertiu o taxista, sem olhar pelo retrovisor.
“Ahã”, respondeu Bianca tentando adivinhar em que fim de mundo tinha ido parar naquela madrugada. Estava na zona sul, e ela não conhecia nada alem da ponte, Butantã e Barra Funda. Sentiu o celular vibrar no bolso da jaqueta. Ainda tinha celular, comemorava seu superego, enquanto do outro lado da linha, a voz de Nana a fazia recordar que o que fica oculto simplesmente não aconteceu:
“Cadê você, sua doida? Sua mala ficou no bar e você foi embora de carona com aquele cara que mora em Interlagos.”
“A mala tá com você?”
“Não! Dei a mala pro França, porra”. Era obvio que a mala estava com ela. Ainda bem que a mala estava com ela. Ela teria perdido tudo: a câmera fotográfica, a rasteirinha da Cas, os biquínis da Mulata, tudo que ela cuidara com tanto cuidado no cafofo do capoeira para que não se confundisse com a bagagem das adolescentes argentinas que acampavam no quintal.
Lamentou não ter ganho a botinha preta no amigo secreto da família. Lembrou disso no taxi. A avó disse: “Você já tem tantas. Por isso comprei uma bolsa”. Ela gostou da bolsa, mas era de uma cor laranja, difícil de combinar. Precisava mesmo da bota preta, embora tivesse uma marrom e uma verde musgo. É que pra determinadas ocasiões e peças, a bota tinha que ser preta. Mas nem valia a pena explicar. Todo natal, depois da catarse, a casa da avó esmagada em papel de embrulho e fruta seca, era sempre a mesa sensação de vazio: faltou um biquíni, um cintão, um vestidinho branco pro réveillon. Sempre faltava alguma coisa. As gotas iam ficando mais espessas, viravam gelo e caiam sobre o pára-brisas do taxi. Agora só faltava a mala, que estava com a Nana, e ai sim, chuveiro, cama e chega de saudade. Mas o taxista tinha medo da geada. “Da ultima vez, moça, meu vidro ficou estraçalhado. Eu vou encostar no estacionamento coberto do Extra, se você não se importar”. Ela se importava. “Vc não disse que ia evitar a Marginal?”, questionou. Mas o taxista tinha seus motivos. Bianca precisava vomitar a cozinha de inox do coroa grisalho mas não disse nada. O cabelo cinza, a cozinha cinza, a manhã cinza. É que faltava ar.
Não conseguiu abrir as janelas que o taxista travara. Gorfou no banco de trás. Desceu do carro sem pagar, se esquivando dos xingamentos, no meio da tempestade. A maquiagem escorria pelos olhos de trinta anos, a lente de contato coçava pedindo higiene. Entrou no banheiro do hipermercado. Uma moça feia espremia espinhas diante do espelho. Feia demais, ela pensou, lembrando de Hilda. Aprendera com a avó a fazer uma cara simpática quando olhasse pro espelho. Mas ele nos flagra nas feições mais renegadas. Estava ensopada diante de um espelho em um hipermercado da zona sul. Lembrou da canoa, do trator, do barco, dos dois ônibus e do avião que tomou pra voltar pra casa. “São Paulo não é para amadores”.
Saiu do banheiro e comeu um pão de queijo. Era afeita a evitar carboidratos mas hoje não era dia de nada. Hoje era um hiato, um momento fora do tempo. Mas não como quando se reencontra um amor de infância e as horas transitam nas bordas. Hoje era um buraco negro. Toda a massa universal convergia para um ponto único, escuro e inexorável, o orifício da sua vagina bêbada. Queria ligar pra casa. “Pai, cheguei”. Não tinha coragem. A cerejinha do bolo estava toda suja de chocolate.
Chegou a assuntar com um manobrista se algum ônibus ia pra zona oeste mas ela não entendeu a explicação. Sentou no chão de baixo do toldo, deixou o tempo esquentar, ou esfriar. “Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”. Lembrou do contínuo aspirante a motoboy que trabalhava na agência de propagandas do seu primeiro estágio. Ela beijou por desencargo de consciência de classe e o analista perguntou: “Seu corpo, por acaso, é uma ONG?” Se a vida acabasse ali, como um meteoro sobre a lanchonete do Hurley, quais seriam os últimos pensamentos? Para onde esses pensamentos vão depois que a gente morre? E se ela fosse estéril? E se tivesse unzinho pra ouvir estéreo...
Já era de noite quando conseguiu um novo taxi. “Pra Vila Madalena”, disse, sem pedir por favor. Não olhou pro motorista, pro meio fio, pras bocas de lobo, pra rua em curva, pra chuva que arrastava os sacos de lixo. Queria ficar assim, sem olhar. Só o OHM dos eunucos de laranja. Ah, os eunucos de laranja... “Rua Harmonia, né?”, perguntou o taxista, virando à direita. Ela pagou sem falar nada. Bateu a porta do taxi, olhando pro outro lado. “Tem geladeira não?”, ele disse sem ser escutado. Chovia demais.
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