terça-feira, 23 de agosto de 2011

ERA UMA CASA

Nem bem o velho morreu, o caseiro deu pra beber de verdade, em copinho de dose, metade pro santo, outra pra dentro. A viúva não sabia como proceder. Sabia dar ordens, comandara a cozinha como uma estadista, mas o caseiro era de uma natureza inapreensível. Bebia demais e ameaçava as filhas. A avó que quase só tivera filhos e netos macho, virou líder de um matilha de amazonas.

Quando o caseiro enamorou-se de uma cadela dálmata, a resignação tomou o lugar de qualquer outro sentimento que pudesse aflorar dentro dela. Ele consumara o ato com o cão de guarda do vizinho. Ela que tinha uma idéia nebulosa do amor e dos animais, segurou o livro de orações e decretou, “Estou viúva”, não sem antes despedir o herege.

Nunca mais tricotou, nem cozinhou, nem zelou pelos netos, nem mudou o canal da televisão. Sentou no mesmo canto esquerdo do sofá em que se sentara nos últimos 40 anos e esperou o tempo passar. Os sofás se dispunham em L, separados por uma mesa cantoneira, e na outra ponta, do outro sofá, sentava Domênica Bertotti, irmã de sua mãe. Domênica esperou a morte por 33 anos e 33 dias. Aos 100 anos, caiu no chão e disse “Chega”. Até morrer, um par de anos depois, seria a única coisa que diria com entusiasmo, alem de murmurar algo em piamontês e clamar por Antônio, que ninguém soube quem foi.

“ Elas ficam”, disse a viúva ao caseiro, esquecendo que não se olha nos olhos de cão raivoso. “Ir com o senhor pra onde, pai?”, questionou a caçula, em tom de súplica, como se a pergunta pudesse expiar sua culpa. Ainda era apenas católica. Ele esbravejou contra as filhas e babou. A mulher tentou acalmá-lo mas levou um tapa no rosto. Para uma mulher decente, um tapa basta. Seu coração não era adestrável. Que fosse pro bar procurar outra cachorra.

Ele obedeceu. A dálmata estava presa no canil. O bar estava a 2 km dali. A noite preta e branca maculava sua dignidade. À noite, ele enxergava como os cães: puro rastro. Queria matar as filhas, a esposa, a patroa e a cadela. Iria matar as filhas, a esposa, a patroa e a cadela. Todas juntas. Querosene e cachaça. A sarça ardente. Pisava as brasas de São João. Só tem medo do fogo que nunca foi pro inferno. E sua vida fora uma sucessão de inferninhos enrustidos, entre o fardo e farda, sua decente ocupação.

“Foi no dia em que perdi meu emprego, minha mulher e minhas filhas que eu segurei na mão de Deus”, diria o caseiro, depois de encontrar Jesus. O encontro seria furtivo e arrebatador. Mais perene que se arranjado. Seu Zé, o motorista da viúva, por dentro dos pormenores, correu para lhe estender a mão: era evangélico. Porque pra estender a mão pra desvalido, drogado, doente, ninguém como um evangélico. E o caseiro foi à igreja. Primeiro encontrou Jesus. Depois falou com ele. E por fim, virou pastor e falou em nome Dele. Quanto mais sujo o passado do regenerado, mais imaculado o seu presente. Ninguém mais se lembrou da dálmata.

A viúva ciente da inflexão que parecia obra divina achou mesmo que eram bem tortas as linhas do Senhor. Não ia a igreja porque era Kardecista. Recebia cartas psicografadas do marido que não fora epistolar e nem cristão. Mas acreditou nas cartas e passou a confiar no caseiro como ele mesmo confiaria. Sabedoria anciã que releva o que não move moinhos. Olhou uma das placas da parede da cozinha e repetiu, como se fosse um epitáfio: se a sorte te der um limão, faça uma limonada. Sozinha, naquele fim de mundo, naquele fim de vida, zelando pela tia centenária, guardada por um caseiro zoófilo, era melhor mesmo que o marido estivesse ciente, ainda que fosse em outro mundo. A vida seguia em frente, enfim.

Nasceu o segundo neto 3 meses depois que o avô morreu. Domênica Bertotti dizia que o rebento era a reencarnação do velho. Havia muitos indícios. Não eram só as datas de óbito e nascimento que coincidiam com o tempo espírita de retorno a terra. Eram também os fatos, os traços, os trejeitos, as manias e o gênio forte. Velhos são gabaritados em interpretar a personalidade dos bebês. Já viram muitos. “Deixa eu gastar o meu”, dizia a avó, apertando o rebento, como se a vida não desse tempo.

14 anos depois, quando enfim a viúva também morreu, um padre que passava pelo velório se ofereceu para rezar uma missa. Ele rezou, mas foi inapropriado, porque a finada era espírita. Na sua crença, estava em um hospital, assimilando a vida após a morte e curando a alma das mazelas terrenas, para então chegar ao gramado verde, abraçar o marido, a italianada toda e morrer, feliz para sempre, ou até reencarnar. Mas os terráqueos rezaram missa no velório, muito embora ninguém ali soubesse rezar. Geração de ateus – pagãos diria a velha- mas a velha estava morta, e morto não tem vontade.

“Locação de filme pornô”, disse o caçula da finada. “Meu pai sempre sonhou em ver uma putaria na piscina”. Não era inconcebível que 24 horas depois da orfandade o caçula tivesse idéias tão hereges. Naquela família, prerrogativa de céticos, o luto não prescindia de tristeza. Tomaram cachaça, brindaram os mortos e quando todos pensavam que o latifúndio seria posto a venda nem bem o corpo da matriarca esfriasse, nada mudou.

A casa no fim do mundo ficou vazia da velharada mas era como se todos eles continuassem por lá. O outro filho, o primogênito, tomou as redes da propriedade. Não deixou que tirassem um retrato da parede: nem o Jesus dourado e a coroa de espinhos. A pintura do Arco do Triunfo continuava imperando na parede da sala, embora ninguém ali conhecesse Paris, e ao lado dele, a porcelana pintada a mão pela Tia Laura, que nunca fora pintora.

O que são os espíritos senão a matéria morta da nossa memória? As velhas continuavam lá. E como não continuar se todos os seus pertences permaneciam ali, como um mausoléu de quinquilharias embalsamadas, um museu da saudade? “ Tia Domênica era a criatura mais espiritualizada que eu já conheci”, advogou o caçula herege . “Antes mesmo de morrer, ela já estava em alfa, tocando harpa com os arcanjos do senhor”. Talvez ele estivesse certo e Domênica já tivesse desencarnado há muito tempo. Mas e se não tivesse?

Quando nasceu Sebastião, com seus grandes olhos que foram verdes nos primeiros meses, ele gargalhava risos de bebe aos ventos. Certo dia, ria tanto olhando para o nada, que a gente soube: “As velinhas estão gracejando com ele”. E era tanto gracejo que feria o senso comum da família, que por definição, não acreditava em nada alem dos direitos humanos. Mas quando os fantasmas vieram puxar o pé dos dormentes, era hora de fazer alguma coisa. O caseiro orou. A esposa, com as palmas das mãos erguidas, sussurrava palavras repetidas em nome de Jesus.

“ Livra essa casa do mal, meu pai”.

Mas que mal havia em continuar morando na casa em que sempre se morou mesmo depois de morto? Foram quase cinquenta anos afinal. Mas as velhas eram espíritas e refutavam as orações dos crentes.

No quarto de dormir onde a avó dormira durante toda sua vida havia um retrato em óleo de seus 4 anos, com laço de fita na cabeça. O dia em que a menina velha saiu da parede, Lia ainda estava grávida. A avó apareceu num entressonho, naquele momento nauseabundo em que o corpo adormece, e a razão desapegada das entranhas sabe muito bem que esta dormindo. “Acorda”, gritava sem som. A alma de Lia escutava arguta, tentando avisar o resto. A menina avó saiu do quadro e falou pouca coisa: somente aquilo que uma menina de 4 anos falaria. Contou alguma coisa de outrora. A historia de como a mãe matou uma galinha. Aquela que morreria de Parkinson, adquirido ainda na mocidade. A que engravidou de um espanhol de origem desconhecida. A menina avó, do pai, herdara tão somente o nome: Gómez. Bertotti Gómez, que ela borraria de seus registros como uma nódoa, uma gota audaz de azeite que insistiria em macular seus hábitos. A avó nunca seria bela. A menina avó o era, ali naquele sonho a óleo sobre tela, como o são, na graciosidade inconteste dos infantes, as crianças de qualquer tempo: laço de cetim caído para o lado nos cabelos que no futuro exalariam spray Karina. Toda ela era olor de tinta fresca. O quarto, com o lustre de lança invertida, apontando para baixo, para a perna de quem recostasse no canto direito da cama, a ameaça fantasma, o tremor da terra que não tremia naquelas instancias. Só naquela triste e leda madrugada. Naquela em que Lia jazia sem pernas, paralisada, lançada pelo lustre feio da década de 60. A avó aos 4 anos de laço no cabelo espreitando o estancamento, a curiosidade diabólica da primeira idade. A perna doía suas azias de grávida, e dentro dela, crescendo e aparecendo, Sebastião reinava entre suas costelas. Torcia o sudário que cobrira o travesseiro, a cabeça branca do avô naquele canto direito da cama que nunca teve medo do lustre. A cabeça que nunca separou da perna, sua barriga grande e cheia de sardas. A barriga de Lia, grande e cheia de vida. Sonhou

Depois contou ao pai a experiência borgiana como se o tentasse a remover a tela dali. Mas ele via, confundido, Dorian Gray em suas súplicas. Lia desistiu. Deixou que o museu imobiliário reinasse incólume. Ele precisava daquelas lembranças.

Quem são os fantasmas senão aquilo que fazemos deles? A lembrança matizada na casa. O DNA.

A menina avó começara a gracejar para o Sebastião ali, mas Lia não tinha percebido. Foi ele nascer e produzir seus próprios risos para ganharem amizade sincera. E passaram-se a querer bem. Bem queridos, os dois. A viúva morta e o bisneto vivo. Mas o primogênito pusera a casa a venda. Achado o comprador, restava ainda saber o que fazer com os móveis. Se a família vendesse tudo, herdariam os felizes novos proprietários, a matéria morta e incerta dos fantasmas que ouviam rádio?

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