O cabeleireiro lhe ensinou que as mulheres não envelhecem: ficam louras. Ela prefere acreditar que está mais interessante. É como vinho, como Carla Bruni. Só melhora com o tempo. Com os cabelos devidamente escuros e poucos fios brancos para delatar a idade, ela malha, trabalha, tem grana para comprar maquiagem importada, e ao fígaro -divaga em silêncio- compete o design de suas sobrancelhas. Prefere seu corpo hoje ao que era há uma década, quando a ditadura da cintura baixa a fazia odiar sua barriga. Hoje ela aposta no decote. E decote não depende de peito. Depende de lingerie.
Sabe que salto alto favorece as batatas e se equilibra nas alturas. Desdenha, com uma simpatia nostálgica, da chinesinha xexelenta de xiboquinha e cipó cravo que seu pai jogava no lixo quando ela voltava do forró. Sob protesto, ela argumentava: todo mundo devia ter só um sapato. Hoje tem sapateira. Seu closet é quase tão lindo quanto o da Carrie Bradshow. Quando sente fome nas horas tardias, não pede pizza, pede Temaki. Tem iphone, pacientes, amigas, um pai fanfarrão e uma solidão de gastrite dessas que costumam bater nas madrugadas frias. No verão é muito mais fácil ser solteira. O sol se encarrega dos prazeres da epiderme, o corpo corresponde em bronzeado, e nada como uma marquinha de biquíni para aplacar os ânimos de uma mulher aos trinta anos.
Os pacientes já pagam seu preço na íntegra. Não há nada que não seja maduro na sua conduta. A não ser pelos tipos raros que acordam ao seu lado, quando ela se excede na balada. São sempre iguais, o que varia é o endereço da casa de seus pais porque os caras com quem ela se amanceba não são emancipados: sonham em viver em Fernando de Noronha, não tem grana pra pagar a conta. É sempre para um desses que ela acaba dando mole. E quando são muito fofos e bons ouvintes, a relação pode se alastrar por dois anos, sem que ela jamais os apresente como namorados. De noite, reza para os anjos da guarda e conversa com Santo Antônio. No réveillon, baixo a chuva de fogos em Copacabana que ela vira pela primeira vez, o Santo lhe aferiu: “este ano o projeto é de mãos dadas”. Mas estamos em setembro e ela segue solitária.
Essa noite ela ainda não rezou porque pretende dormir muito mais tarde. As amigas estão no banheiro do seu apezinho alugado em Perdizes. Ela tem um estojo de maquiagens invejável. E aprendeu o ofício no site da Julia Petit. Está perfeita: batom nude, e o nude é o novo Black, diz sua melhor amiga publicitária. Olhos reforçados em lápis preto, estilo Amy Whinehouse, cabelo de gringa (aquele coque solto em que os fios se esparramam pelos ombros despenteados), blusinha tomara que caia, calça justa, sapato meia pata. Hoje ela vai pra guerra. A balada é corriqueira. Festinha na laje, casa da Fecê, amigo desde a quarta-série. A mesma balada brancodrama dos últimos 20 anos. É amiga do DJ e o DJ sabe que a mulherada dança melhor em português.
Ás vezes o esquenta é bem melhor que o evento. Amigas reunidas experimentando roupas, exibindo as calcinhas novas, maldizendo as próprias bundas, exorcizando celulite, tomando caipirinha de saque com adoçante, obviamente. Camarada faria tudo para estar ali, invisível, vendo as meninas de topless, troca- troca de blusinha, birita, baseado, gargalhada e apenas uma pauta monotemática, em várias derivações que nunca perdem o eixo: homem. Só falam de homem. As casadas reclamam, as solteiras também, comentam os gatinhos da repescagem. Ela só tem esperança ali: na repescagem. Um dia, um cara incrível, separado e superado o trauma, ainda há de seu príncipe. Mas essa noite a diversão começou em casa e não tem problema se não tiver ninguém interessante na laje do Fecê, o que aliás, é o mais provável. Figurinha repetida não completa álbum, afinal.
Saem em dois carros, param no posto, compram cerveja e gelo. Chegam naquele horário estratégico: balada bombando, breja rareando e oito deusas com oito caixas e um saco de gelo na mão. Se sentem numa propaganda da Brahma. Quase isso, à diferença que tem pós graduação, um trampo desafiante e muito repertório. Ela, além de boa leitora, cinéfila, gourmet e fashionista, manja de futebol. E manja de verdade. Não como a maioria das mulheres que arrisca falar de futebol só pra fazer pressão. Ela é flamenguista. E sabe do que está falando. Assiste mesa redonda no domingo, e não troca por nenhum filme com o Rodrigo Santoro. Futebol, pra ela, é coisa séria.
Por isso mesmo, os caras, essa noite já chegam aloprando. O Flamengo perdeu a liderança para um time paulista, e ali, na laje do Fecê, só ela, ninguém mais, é flamenguista. Quando se dá conta, breja numa mão, cigarrinho de filtro branco na outra, do alto de suas sandálias meia pata, está ela, boca suja, falando alto, discutindo o impedimento com um conhecimento de causa arrebatador. Bate um bolão, definitivamente, e também por isso mesmo, boa parte da rapaziada não se atreve: quem banca? Bem sucedida, boa de verdade, bom gosto, bom berço, bom papo e boleira. É muita responsabilidade. E ela vai colecionando amigo macho.
Começa o samba. Ela vai pra roda. A meia pata atrapalha um pouco, mas ela samba direitinho. Está totalmente confortável apesar do salto. É uma noite feliz, e que importa, no fim, se vai dormir sozinha? Mas é quando menos se espera uma inflexão que ela acontece, assim como um acidente de carro. Ela samba, dá voltinha, paradinha, bambeia, faz que cai, não cai. Ele a segura. Como é bonito. Suas mãos na cintura fina dela. Nunca tinham se visto. Era primo do amigo de não sei quem. Não falam. Só beijam. A saliva combina. A pele combina. O samba é romântico.
Ele é corinthiano, o que, para uma flamenguista, é menos problemático do que ser são paulino. Ele é solteiro. Ele é CLT. Ele conjuga os esses. Ele serve seu copo de vinho. Ele oferece o casaco quando ela sente frio. Ele a respeita. Ele carrega sua bolsa. Quando ele abre a porta do carro – prática que somente um percentual mínimo de cavalheiros de rara estirpe ainda preserva- o carro da porta em questão é um AUDI.
No caminho, ela só pensa numa coisa: “Por que um AUDI?”. Se ele tem cem mil reais para torrar num carro, por que um Audi e não um Land Rover, ou qualquer outro carro que justifique gastar tanto em quatro rodas? Um Audi não encara barranco, estrada de terra, buraqueira. Um Audi não é econômico. Audi é carro de tiazinha que não tem competência pra dirigir uma blazer. E ela por princípio, abomina tiazinhas de blazer. “Por que um Audi?” . E se for dos pais dele? Se for dos pais dele, ela já sabe que ele é do tipo que sonha em viver em Fernando de Noronha. E pior: antes um pé rapado que mora com os pais do que um playboy que mora com os pais. Ela não sabe bem porque acredita nisso. Faz parte de seus princípios. Talvez porque sua vida tenha sido uma eterna labuta. Talvez porque tenha se acostumado a viver com o constante problema da falta de grana... Talvez porque a simples ideia do investimento num carro paga pau com banco de couro- a mesma grana que poderia dar entrada na casa própria que ninguém da sua família jamais teve- a deixe com náuseas. Ela bebeu pouco. Mas o cheiro do couro é foda!
Ela pede pra ir pra casa. Ele respeita. Abre a porta do carro, ela não dá explicações, nem beijos, nem esperanças, nem telefone. Bate a porta do Audi e entra na portaria. “Por que lindo se dirigia um Audi?”. "Por que dirigia um Audi, se lindo”. Está tudo errado! Não vai rezar pros anjos da guarda. Não vai falar com o Santo. Hoje ele passou dos limites. "Um Audi!!!"